16/05/2021

12 - A intervenção do amor - Parte 1

 


 

Filemom 1.8 a 22 “Por isso, mesmo tendo em Cristo plena liberdade para mandar que você cumpra o seu dever, prefiro fazer um apelo com base no amor. Eu, Paulo, já velho, e agora também prisioneiro de Cristo Jesus, apelo em favor de meu filho Onésimo, que gerei enquanto estava preso. Ele antes lhe era inútil, mas agora é útil, tanto para você quanto para mim. Mando-o de volta a você, como se fosse o meu próprio coração. Gostaria de mantê-lo comigo para que me ajudasse em seu lugar enquanto estou preso por causa do evangelho. Mas não quis fazer nada sem a sua permissão, para que qualquer favor que você fizer seja espontâneo, e não forçado. Talvez ele tenha sido separado de você por algum tempo, para que você o tivesse de volta para sempre, não mais como escravo, mas, acima de escravo, como irmão amado. Para mim ele é um irmão muito amado, e ainda mais para você, tanto como pessoa quanto como cristão. Assim, se você me considera companheiro na fé, receba-o como se estivesse recebendo a mim. Se ele o prejudicou em algo ou lhe deve alguma coisa, ponha na minha conta. Eu, Paulo, escrevo de próprio punho: Eu pagarei, para não dizer que você me deve a sua própria pessoa. Sim, irmão, eu gostaria de receber de você algum benefício por estarmos no Senhor. Reanime o meu coração em Cristo! Escrevo-lhe certo de que você me obedecerá, sabendo que fará ainda mais do lhe que peço. Além disso, prepare-me um aposento, porque, graças às suas orações, espero poder ser restituído a vocês”.

Onde estão os pacificadores?

Você já esteve envolvido em algum conflito, litígio ou contenda de qualquer natureza? As pessoas que já estiveram sabem o quanto machuca, sobretudo quando se é a parte mais prejudicada, lesada ou ofendida. Nessas horas, como são necessários os pacificadores! Mas infelizmente esses conciliadores são escassos. Eles estão, para a nossa tristeza e tragédia, em processo de extinção. É mais fácil encontrar um rinoceronte branco do norte africano do que um pacificador, mesmo entre os cristãos. O que não faltam são os que colocam lenha na fogueira para ferventar os conflitos. É um contrassenso, especialmente à luz das palavras de Jesus no Sermão do Monte (Mateus 5.9 “Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus”).

Nunca se viu tantos crentes, tanta gente professando fé em Jesus Cristo, tanta gente se gabando de os evangélicos estarem em franco crescimento no Brasil (Pesquisador do IBGE projeta que já em 2022 católicos devem ser menos de 50% da população. (Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/01/evangelicos-podem-desbancar-catolicos-no-brasil-em-pouco-mais-de-uma-decada.shtml). Mas onde estão os pacificadores, meu Deus do céu? Cadê os promotores da paz? Afinal, eles é que “serão chamados filhos de Deus”. Não é verdade?

Ken Sande escreveu que; “Pacificadores são pessoas que respiram graça. Eles recorrem continuamente à bondade e ao poder de Jesus Cristo, e então trazem seu amor, misericórdia, perdão, força e sabedoria para os conflitos da vida cotidiana. Deus se deleita em expirar sua graça através de pacificadores e usá-los para dissipar a raiva, melhorar a compreensão, promover a justiça e incentivar o arrependimento e a reconciliação. (Sande, p. 11).

Nesses termos, os pacificadores fariam toda a diferença nos conflitos entre partes de um litígio de qualquer natureza, entre parentes ou familiares de qualquer classe social, no local conflituoso de trabalho e até nas disputas que às vezes nascem no seio de igrejas. Pacificadores, agindo com graça e verdade que brotam do evangelho, sempre contribuirão de forma poderosa para promover a paz, manter a unidade, melhorar os relacionamentos, gerar mudança e crescimento e fazer florescer o amor. O problema, infelizmente, é que a maioria de nós, mesmo os crentes, não crê que essas coisas sejam possíveis. Nós já vivemos por tanto tempo sem contar com a presença de pacificadores, já sofremos tanto com as consequências de conflitos mal resolvidos que nos tornamos céticos e cada vez mais distantes uns dos outros. Relacionamo-nos de longe, com sorrisos amarelos nos lábios. Mas isto é péssimo para o testemunho do evangelho.

Ken Sande foi cirúrgico em suas palavras: “A maioria de nós já observou que esses resultados (pacificação, reconciliação, unidade, mudança, crescimento e amor) não são comuns no mundo de hoje. Quando pessoas enroscam os chifres na corte de um tribunal, em assembleias ou seções de igreja, no quarto ou no local de trabalho, os relacionamentos geralmente são severamente prejudicados. Conflito nos rouba tempo, energia, dinheiro e oportunidades incomensuráveis de ministério ou de negócios. O pior de tudo é que pode destruir nosso testemunho cristão. Quando crentes estão amargamente envolvidos em desacordo ou friamente afastados um do outro, poucas pessoas prestarão atenção quando tentarmos conversar com elas sobre o amor reconciliador de Jesus Cristo. Mas o oposto também é verdadeiro. Sande argumenta que “quando os cristãos aprendem a ser pacificadores, podem transformar o conflito em oportunidade de fortalecer relacionamentos, preservar recursos valiosos e tornar a vida deles em um testemunho do amor e do poder de Cristo”. (Sande, p. 12).

Winston Churchill, aos 30 de dezembro de 1941, a II Guerra Mundial a todo vapor, discursando na Câmara do Deputados do Canadá, pontuou:

“Gostaria de salientar a você, Sr. Presidente, que em nenhum momento pedimos qualquer atenuação na fúria ou malícia do inimigo. Os povos do Império Britânico amam a paz. Eles não estão procurando pelas terras ou pelas riquezas de nenhum país, mas são um grupo valente e resistente. Não percorremos todo este caminho através dos séculos, através dos oceanos, das montanhas, dos descampados, porque somos feitos de açúcar. Mas hoje, como bem pontuaram Alan Greenspan e Adrian Wooldridge, “graças a uma combinação maligna de litígio, regulamentação e moda pedagógica, gente de açúcar está em toda parte” (Fonte: Capitalism in America: a history. Alan Greenspan, Adrian Wooldridge. New York City: Penguin Press, 2018, p. 309).

Onde estão os pacificadores que contribuem para a construção de seres humanos fortes e corajosos, gente cheia de fé, esperança e amor? Você se habilita a ser um pacificador? Deveria, pois nós, os cristãos, somos todos chamados a ser pacificadores. A prova de que somos de fato filhos de Deus passa pela nossa disposição de ser e de atuar como pacificadores neste mundo em guerra.

Estratégias de um pacificador

A carta a Filemom foi escrita por um pacificador. Além de ter servido para reconciliar Filemom e Onésimo, contribuído para que houvesse perdão, comunhão e libertação (tanto de quem precisava perdoar (Filemom), como de quem precisava ser perdoado (Onésimo), Paulo escreveu este documento de tal modo a nos ensinar a ser o tipo de pacificador que todo cristão precisa ser. A abordagem do apóstolo é simples, mas é tão profunda quanto abrangente, servindo como manual de estratégias perfeito para se resolver qualquer conflito, ensinando-nos a perdoar e a agir como pacificadores.

O texto que nós lemos no início (vs. 8 a 22) é o coração da carta. E o que encontramos diz respeito a como deve ser a atitude de um cristão em face de um conflito ou de uma injustiça. Há pelo menos cinco estratégias que podemos observar, estratégias imprescindíveis para se intervir com amor pela causa do amor, para se intervir como pacificador:

1 - Apele com base no amor, não na força da autoridade (vs. 8 e 9);

2 - Apele com base na empatia, não na frieza da distância (v. 10);

3 - Apele com base no sacrifício, não na imposição da servidão (vs. 11 a 14);

4 - Apele com base na transformação do coração, não na mudança do comportamento (vs. 11, 15 e 16);

5 - Apele com base na lógica do evangelho, não na ideia do aqui se faz, aqui se paga (vs. 17 a 22).

São estratégias revolucionárias, tanto para o nosso coração, sempre indisposto a perdoar, como para a nossa atuação enquanto pacificadores daqueles que estão se destruindo ao nosso redor. Vejamos uma de cada vez.

1 - Apele com base no amor, não na força da autoridade

Filemom 1.8 e 9 “Por isso (por causa de seu histórico de homem bondoso e amoroso, vs. 4 a 7), mesmo tendo em Cristo plena liberdade para mandar que você cumpra o seu dever (por causa da graça e da paz que nós desfrutamos do evangelho, v. 3 e por causa da comunhão que é devida a todos os santos, vs. 1 e 2), prefiro fazer um apelo com base no amor. Eu, Paulo, já velho, e agora também prisioneiro de Cristo Jesus”.

Paulo escolheu um caminho “sobremodo excelente” (ARA) ou que “supera os demais” (NVT), para usarmos a linguagem que ele empregou em 1 Coríntios 12.31: o caminho do amor, não o da autoridade ou superioridade. Por quê? É que o exercício puro do poder frequentemente assassina o amor. Em outras palavras: o amor é a baixa ou a vítima mais comum em atos de poder e força. Pode criar rivais e perpetuar conflitos. Tudo o que Paulo mais evitava e procurava extinguir: rivais e conflitos.

O abolicionista americano Frederick Douglass (1818-1895) e um dos primeiros apoiadores do movimento feminista nos EUA, conhecido como “O Leão de Anacostia” (nome do bairro em que ele viveu e morreu em Washington, D.C.), perpetuou uma afirmação que ainda hoje é celebrada, especialmente em meses mais recentes com o ressurgimento do movimento Black Lives Matter ou Vida Negras Importam. Douglass, em algum momento, até serviu como uma espécie de conselheiro de Abraham Lincoln, juntando-se a outros para convencer o presidente norte-americano de que escravos também deveriam servir nas forças da União e que a abolição da escravidão deveria ser uma meta da guerra civil americana. Eis as famosas palavras de Frederick Douglass:

“O poder não outorga coisa alguma sem uma exigência. Ele nunca fez e nunca fará. Descubra exatamente a que qualquer classe de pessoas silenciosamente se submete e você terá descoberto a medida exata de injustiça e de maldade que lhes será imposta, e assim continuará até que tal coisa seja resistida com palavras ou força, ou com ambas. Os limites dos tiranos são prescritos pela resistência daqueles que eles oprimem. Se não há luta, não há progresso. Aqueles que professam favorecer a liberdade e, mesmo assim, censuram a agitação (a desordem social) são homens que querem colheitas sem arar a terra; eles querem chuva sem trovões e raios. Eles querem o oceano sem o medonho rugido de suas muitas águas. Essa luta pode ser moral ou física, e pode ser moral e física, mas deve ser uma luta. O poder não outorga nada sem uma demanda. Ele nunca fez e nunca fará”. (Frederick Douglass, 3 de agosto de 1857).

O argumento era que o combate que ele e outros abolicionistas estavam travando para conquistar a liberdade dos negros nos Estados Unidos não seria vitorioso se não houvesse luta, inclusive armada. A questão é que se nós esticarmos um pouco mais forte a lógica de Frederick Douglass (e do recente movimento Black Lives Matter) nós descobriremos que uma vez que a luta pela liberdade tenha conquistado algum sucesso pelo poder como forma de resistência e de retribuição, a tendência do ser humano será de se estabelecer naquele recém-conquistado território com novos obstáculos e disposição para lutar pela sua manutenção. “Os que usam a espada morrerão pela espada”, disse Jesus (Mateus 26.52).

O poder como base para a justiça, com efeito, tem esse hábito de criar novos tipos de injustiças, desigualdades e diferenciais de acessos a alguns privilégios. Haveria algum caminho melhor? Deve haver, pois a revolta, a desordem ou a revolução raramente funcionam e certamente não perduram. O amor é uma base muito melhor para a justiça.

Por exemplo: A gênese bíblica que deu origem ao movimento pelos direitos civis foi a insistência no amor como o fator primário de motivação para o protesto. Martin Luther King Jr. (1929-1968), o arquiteto e porta-voz principal desse movimento, bem como aqueles que o cercavam, entendia que a melhor estratégia pela causa da justiça não era se armar para a batalha, mas ter braços abertos para amar, abraçar e acolher. King Jr dizia que “o amor é a única força capaz de transformar um inimigo em um amigo”.

No domingo do dia 5 de dezembro de 1955, M. Luther King Jr, contando apenas 26 anos de idade, proferiu um de seus primeiros discursos. O local era a Igreja Batista de Street Holt, na cidade de Montgomery, no Estado do Alabama. Cerca de 5 mil pessoas estavam reunidas para ouvir o jovem e eloquente pastor batista lhes anunciar algumas palavras de encorajamento naquele culto. Eis alguns trechos do belíssimo discurso:

“Outro dia, na última quinta-feira, para ser exato, uma das melhores cidadãs de Montgomery, não uma das melhores cidadãs negras, mas uma das melhores cidadãs de Montgomery, foi retirado de um ônibus e levada para a cadeia, porque se recusou a se levantar para dar seu lugar a uma pessoa branca. A senhora Rosa Parks é uma ótima pessoa. E, como isso aconteceu, estou feliz por ter acontecido com uma pessoa como a Sra. Parks, pois ninguém pode duvidar do alcance ilimitado de sua integridade. Ninguém pode duvidar da altura de seu caráter, ninguém pode duvidar da profundidade de seu compromisso cristão e devoção aos ensinamentos de Jesus. E estou feliz porque isso aconteceu com uma pessoa que ninguém pode chamar de fator perturbador na comunidade. A sra. Parks é uma boa pessoa cristã, simples e modesta, há nela integridade e caráter. E só porque ela se recusou a ceder seu lugar, ela foi presa. E vocês sabem, meus amigos, chega um momento em que as pessoas se cansam de ser pisoteadas pelos pés de ferro da opressão. Chega um momento, meus amigos, em que as pessoas se cansam de mergulhar no abismo da humilhação, onde experimentam a desolação do desespero persistentemente doloroso. Estamos aqui, estamos aqui esta noite porque já estamos cansados. E quero dizer que não estamos aqui defendendo a violência. Nós nunca fizemos isso. Quero que se saiba em Montgomery e em toda a nação que somos cristãos. Nós cremos na fé cristã. Cremos nos ensinamentos de Jesus. A única arma que temos em nossas mãos esta noite é a arma do protesto. Isso é tudo. E certamente, certamente, esta é a glória da América, com todas as suas falhas. Esta é a glória da nossa democracia. Se fôssemos encarcerados atrás das cortinas de ferro de uma nação comunista, não poderíamos fazer isso (protestar). Se caíssemos na masmorra de um regime totalitário, não poderíamos fazer isso (protestar). Mas a grande glória da democracia americana é o direito de protestar pelo direito. Meus amigos, não deixe ninguém nos fazer sentir que somos para ser comparados em nossas ações com a Ku Klux Klan ou com o Conselho dos Cidadãos Brancos. Não haverá nenhuma cruz queimada em nenhum ponto de ônibus em Montgomery. Não haverá pessoas brancas retiradas de suas casas e levadas para alguma estrada distante e linchadas por não cooperarem. Entre nós, não haverá ninguém que se levante e desafie a Constituição desta nação. Só nos reunimos aqui por causa do nosso desejo de ver que existe o direito. Meus amigos, quero que se saiba que vamos trabalhar com determinação austera e corajosa para obter justiça nos ônibus desta cidade. Nós, os deserdados desta terra, nós que somos oprimidos por tanto tempo, estamos cansados de passar pela longa noite de cativeiro. E agora estamos alcançando a aurora da liberdade, da justiça e da igualdade. Posso dizer a vocês, meus amigos, enquanto caminho para a conclusão, e apenas dando uma ideia do porquê de estarmos reunidos aqui, que devemos manter, e quero enfatizar isto, em todas as nossas ações, em todas as nossas deliberações aqui esta noite e durante toda a semana e depois, o que quer que façamos, devemos manter Deus na linha de frente. Sejamos cristãos em todas as nossas ações. Mas quero lhes dizer hoje à noite que não basta falar sobre amor, o amor é um dos pontos centrais da fé (face) cristã. Há um outro lado chamado justiça. E justiça é realmente o amor quando levado em conta. Justiça é o amor corrigindo aquilo que se revolta contra o amor”.

(Martin Luther king Jr., “The Montgomery Bus Boycott” 1955).

“Justiça é o amor corrigindo aquilo que se revolta contra o amor”. Em outras palavras, a justiça, da perspectiva bíblica, a verdadeira justiça não é definida e baseada em argumentos sobre poder e força ou no uso da força e da violência ou em ações de desordem social. A justiça bíblica é baseada na ética cristã do amor, e ela se torna a força corretiva quando o amor é negado ou incorretamente praticado. Assim, da perspectiva cristã, a justiça é o amor restaurando o amor ao seu devido equilíbrio.

De volta à nossa carta, lemos que Paulo estava chamando a atenção de Filemom para a justiça. Ou seja: o amor não poderia ser negado a Onésimo. Negar amor ao servo seria injustiça. O apóstolo, então, pediu a Filemom que justiça fosse feita, que o amor (na forma de justiça) restaurasse o amor. (Vs. 8 e 9 “Por isso, mesmo tendo em Cristo plena liberdade para mandar que você cumpra o seu dever, prefiro fazer um apelo com base no amor. Eu, Paulo, já velho, e agora também prisioneiro de Cristo Jesus”).

Paulo deixa de lado a coerção e o poder, ele põe à parte a sua autoridade e a força de suas palavras em favor de uma força superior, uma força de fato redentora e transformadora: a força do amor. E ao agir assim, “com base no amor” (v. 9), Paulo, com efeito, estava colocando bananas de dinamite ao longo do muro da autodefesa de Filemom. Estava silenciando toda e qualquer justificativa em defesa própria que Filemom, porventura, pudesse apresentar para não perdoar Onésimo.

Apele com base no amor, não na força da autoridade. Faça-se justiça, mas faça com amor.

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