O Evangelho de João ou Evangelho segundo João é o quarto
evangelho na ordem do Novo Testamento, considerado por muitos como o mais
profundo e teológico livro do Novo Testamento. Embora, em certo sentido, seja
simples, direto, penetrante e seja compreendido por pessoas comuns, ainda
assim, em outro aspecto, é uma revelação sublimemente profunda, compreendida
apenas por eruditos espirituais. Alguns o chamam de “o maior livro do mundo”.
Introdução
Mesmo o leitor casual do Novo Testamento notará que os três
primeiros relatos da vida de Jesus são geralmente semelhantes em sua linha
geral, enquanto o quarto Evangelho (João) é bem diferente. Os eruditos
referem-se a Mateus, Marcos e Lucas como os Evangelhos Sinóticos (Sinóptico, “vistos
juntos” ou “como paralelos”) por causa de suas semelhanças, mas João é chamado,
bem... João (sem nome especial). Faz parte da coleção do Novo Testamento
conhecida como os Escritos Joaninos (João, 1, 2, 3 João e Apocalipse). As
diferenças entre os Evangelhos Sinópticos e o Evangelho de João são prontamente
aparentes para o leitor alerta. Por exemplo, os sinóticos todos apresentam uma
grande viagem de Jesus da Galileia a Jerusalém, enquanto João retrata Jesus
como estando na Judeia e em Jerusalém com frequência. De fato, para João, o
ministério primário de Jesus parece estar na Judeia, e não no cenário Galileu
dos sinóticos. Outra diferença é vista na falta de parábolas verdadeiras de
João em seus ensinamentos registrados de Jesus. Nos sinóticos, parábolas são a
forma característica do ensinamento de Jesus, com a introdução muitas vezes
repetida, “Jesus disse-lhes uma parábola, dizendo: “o reino de Deus é assim...”
João também é carregado com caracteres, nós não encontramos nos sinóticos:
Nicodemos, a mulher samaritana no poço, e Lázaro, só para citar alguns. Além
disso, algumas das nossas memoráveis frases do Evangelho não são encontradas
nos sinóticos, mas apenas em João: “No princípio era o Verbo.” “Eis o Cordeiro
de Deus”!” “Deus amou tanto o mundo que ele deu seu único Filho”. “Eu sou o
caminho, a verdade e a vida”. “Eu sou a videira.” “O que é a verdade?” “Está
acabado!” “Então, envie-me você” Segundo algumas estimativas, cerca de 90% do
material encontrado em João não é encontrado nos Evangelhos Sinóticos. Os estudiosos
cristãos notaram essas diferenças desde os tempos antigos. Clemente de
Alexandria, escrevendo aproximadamente no ano 185, chamou João de “Evangelho
Espiritual”. Com isso, Clemente não quis dizer que João não era histórico, mas
que João estava mais preocupado com assuntos internos e espirituais. No passado
mais recente, estudiosos excessivamente críticos declararam que as diferenças
entre João e os sinóticos eram irreconciliáveis e concluíram que João é, na
verdade, o primeiro comentário sobre os Evangelhos. Esta suposição (que João é
ficção histórica) existe em muitos comentários de gerações anteriores e ainda é
mantida por alguns hoje. Em geral, porém, o conhecimento atual é muito menos
certo sobre o caráter não-histórico de João. Neste comentário, assumimos que
João relata uma versão historicamente confiável da vida, morte e ressurreição
de Jesus, embora bem diferente daquela dos Evangelhos Sinópticos. Essas
diferenças são parte do que torna o estudo deste livro tão fascinante e será
discutido nos lugares apropriados através do comentário.
Autoria
Uma antiga evidência externa aponta o apóstolo João como o
autor. O testemunho dos patriarcas da igreja é quase unânime em favor desta
posição. A evidência interna é dupla em tipo. A evidência indireta indica que o
autor era judeu, um judeu da Palestina, uma testemunha, um apóstolo, e que o
apóstolo era João. Uma evidência interna direta não é, em si, conclusiva,
exceto pelo fato de que está claro que o próprio autor testemunhou grande parte
daquilo que registrou. Ela não será conclusiva se o nome da testemunha não for
citado. João escreve que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (1.14),
indicando que o Deus encarnado esteve entre aqueles com quem o próprio escritor
estava associado. Novamente ele declara ser testemunha da cena da crucificação.
Quando o soldado perfurou o lado do Senhor, saíram sangue e água. O escritor
atesta o seu testemunho: “E aquele que o viu testificou, e o seu testemunho é
verdadeiro” (19.35). Sem apresentar seu nome, o autor se identifica, em sua
conclusão do Evangelho, como uma testemunha: “Este é o discípulo que testifica
dessas coisas e as escreveu” (21.24). João era filho de Zebedeu, um pescador, e
de Salomé (Marcos 15.40, 16.1, Mateus 27.56). Pensa-se que era mais jovem do
que seu irmão, Tiago. Evidentemente, eram os membros da família de Zebedeu
pessoas que detinham posses. Eles haviam contratado empregados (Marcos 1.20) e,
de acordo com João 19.27, João cuidou de Maria após a morte de Jesus. Embora o
nome do apóstolo não seja mencionado como discípulo de João Batista, há razão
para crer que ele era um dos dois discípulos citados em João 1.35 a 40. Se este
for o caso, fica evidente que o apóstolo foi primeiro um discípulo de João
Batista e, mais tarde, deixou-o para seguir a Jesus, tornando-se um discípulo
que dedicou tempo integral a servir o Mestre (Mateus 4.18 a 22, Marcos 1.19 e 20,
Lucas 5.1 a 11, João 1.29 a 46). João fazia parte do círculo íntimo de
discípulos, juntamente com seu irmão, Tiago, e também Pedro. Em várias ocasiões,
durante a última metade do ministério de Jesus, os três discípulos foram
atraídos para um relacionamento mais íntimo com Jesus, mais do que os outros
discípulos (Mateus 17.1 a 8, Marcos 9.2 a 8, Lucas 9.28 a 36 e 49). Pedro e
João foram os únicos a seguir Jesus até o lugar do julgamento (João 18.15 e 16),
e somente João foi com Ele até o Gólgota (João 19.26). Foram João e Pedro que
correram até o sepulcro na primeira manhã de Páscoa (João 20.3 e 4). O apóstolo
é mencionado nove vezes no livro de Atos. Ali, sua presença ficou obscurecida
diante do destaque da liderança de Pedro. Paulo o cita nominalmente como um dos
líderes da igreja em Jerusalém (Gálatas 12.9).
O Apocalipse, cuja autoria é comumente atribuída a João, é a
última referência das Escrituras ao apóstolo. O seu auto retrato mostra-o na
ilha de Patmos (Apocalipse 1.9), como um profeta e homem de Deus que recebeu
visões da parte do Senhor. A antiga literatura patrística faz referências
ocasionais ao apóstolo, deixando evidente que este era morador de Éfeso.
Westcott cita Jerônimo, que relatou: “Permanecendo em Éfeso até uma idade
avançada, podendo ser transportado para a igreja apenas nos braços de seus
discípulos, e incapaz de pronunciar muitas palavras, João costumava dizer não
muito mais do que: Filhinhos, amai-vos uns aos outros. Por fim, os discípulos e
patriarcas que ali estavam, cansados de ouvir sempre as mesmas palavras,
perguntaram: Mestre, por que sempre dizes isto? E o mandamento do Senhor, foi a
sua digna resposta, e se apenas isto for feito, será o suficiente”. Uma vez que
o apóstolo era da Galileia, e de ascendência judaica, sua formação dava-lhe a
amplitude de experiência necessária para entender e interpretar a vida, os
ensinos, o ministério, a morte e a ressurreição de Jesus, tanto do ponto de
vista judaico quanto do helenístico.
Lugar e Data
Descobrimos que os últimos anos de João foram passados na
Ásia Menor e principalmente em Éfeso. Irineu, que tinha excelentes fontes de
informação e foi educado na mesma região por um discípulo de João, declara que
o Evangelho foi escrito em Éfeso, com ele concorda Jerome e escritores
posteriores. Foi, portanto, escrito após a partida do Apóstolo para esta parte
do mundo, e não pode haver dúvidas de que o seu lugar de composição era a grande
metrópole desta parte do mundo, e por um longo período após a queda de
Jerusalém, o principal centro do cristianismo. Depois da destruição de
Jerusalém, Éfeso tornou-se o centro da vida cristã no Oriente. Mesmo Antioquia,
a fonte original das missões aos gentios, e a futura metrópole do patriarca
cristão, aparece por um tempo menos evidente na obscuridade da história da
igreja primitiva do que Éfeso, à qual Paulo escreveu sua epístola, e na qual
João encontrou um morada e um túmulo. “Essa metade da metade da cidade, metade
oriental, visitada por navios de todas as partes do Mediterrâneo e unida por
grandes estradas com os mercados do interior, era o ponto de encontro comum de
vários personagens e classes de homens”.
Da data em que não podemos ter conhecimento certo. Existem
evidências internas que remetem ao último quarto do primeiro século. Tem sido
sustentado por alguns críticos que é a última composição do Novo Testamento,
mas acho que contém evidências internas de que foi composto antes do
Apocalipse, enquanto o último parece em suas últimas palavras encerrar o cânon
sagrado. Além disso, a voz da igreja primitiva concorda que o Evangelho teve a
data anterior. Foi quase certamente composto entre 75 e 90. Uma tradição vaga
de que foi escrito durante o exílio em Patmos não tem autoridade. Alford fixa a
data entre 70 e 85, Macdonald 86, Godet entre 80 e 90, Tholuck não muito longe
de 100.
Texto do Evangelho
As porções mais antigas do Novo Testamento que ainda existem
são do Evangelho de João. Estas incluem os Papiros Rylands 457 (P52) sobre João
18.31 a 33,37 e 38, com data entre 125 e 150. Um outro texto antigo é o Papiro
Egerton 2 (140 a 160), publicado por Bell e Skeat em 1935. O Papiro Bodmer 2 (Papiro
66 e 75) está classificado entre os textos mais antigos e completos do quarto
Evangelho sobreviventes. Eles são datados em cerca de 200 anos depois de Cristo,
Os estudiosos têm reparado o alto grau de correlação entre Papiro75 e Códice B.
Nestes textos de Bodmer várias passagens de autenticidade duvidosa estão
ausentes, incluindo João 5.4 e 8.1 a 11. Estes textos recém descobertos tendem
a justificar os labores do criticismo do Novo Testamento, como refletido nos
textos de Westcott Hort e de Nestle e no texto crítico mais recente das
Sociedades Bíblicas Americana e Europeia, editado por Aland, Black, Metzger e
Wikgren (1966). Dos textos antigos, muitos creem que o Papiro 75 é o mais
exato.
Vocabulário Joanino
O vocabulário joanino característico é uma pista importante
para o propósito do Evangelho. Até o leitor casual do quarto Evangelho ficará
impressionado pelo paradoxo extraordinário de uma dicção simples e um pensamento
profundo. Os termos mais característicos no vocabulário joanino são comuns.
Alguns deles são monossilábico. Estes incluem palavra, mundo, luz, vida,
conhecimento, amor, ódio e verdade. Igualmente notáveis são glória, trevas, fé
e mal. Embora as palavras sejam muito comuns, elas carregam um peso enorme de
teologia. Quem pode esquadrinhar a profundeza e largura de conceitos neste
Evangelho como vida, luz, glória, amor e verdade? E característica também deste
autor usar contrastes audaciosos, como entre Deus e o diabo, o crente e o
mundo, a luz e as trevas, a verdade e a mentira, a vida e a morte.
Provavelmente o termo simples mais importante neste Evangelho seja a palavra
“vida”. Este é o tema central do livro. Embora amor também seja proeminente
aqui, antes que haja amor deve haver vida. Contudo, à luz do prólogo joanino e
seu antecedente no relato da criação de Gênesis, pode bem ser que, num sentido
cosmológico, a luz venha antes da vida. O tema fundamental deste Evangelho é
que em Cristo há vida e “a vida é a luz dos homens”. O propósito do Evangelho é
também resumido em termos de vida. O fim em vista é a vida eterna e o caminho
para este é a fé no Filho de Deus (20.31).
Principais Temas
1 - Vida. Como observado previamente, o principal interesse
de João é com a vida divina, a vida que está em Deus e que, sob certas
condições, pode ser compartilhada pelos homens. A condição básica deste compartilhamento
é crer em Jesus como o Filho de Deus. Este interesse circundante domina o
Evangelho desde o primeiro versículo até o último. Ao contrário de Lucas, este
autor não está preocupado em expor um relato organizado dos eventos atuais. Em
vez disso, ele é muito seletivo em sua escolha dos eventos, sua escolha é
ditada por um propósito didático; pois João está interessado não somente nos
eventos, mas também em seu significado.
2 - Testemunho. Uma das características mais distintas do
quarto Evangelho é a ênfase sobre o testemunho. A palavra “testemunho” ocorre
trinta e quatro vezes em forma de verbo e treze vezes como substantivo, um
total de quarenta e sete vezes, em comparação com dezesseis vezes em todos os
outros três evangelhos. O autor classifica-se principalmente como uma
testemunha (1.14 e 16, 19.35, 21.24, 5.30 a 47). Seu método não é apenas o de
por em ordem as evidências para convencer seus leitores, mas de fazer uma
declaração pessoal daquilo que ele experimentou. O ponto é que a fé está baseada
na evidência, quer de primeira mão quer de segunda, e embora a fé baseada na
evidência seja boa, a fé que não é dependente de evidência sensorial é melhor
(20.29).
3 - Fé. O testemunho se destina a levar à fé, fé na
reivindicação de Jesus ser o Filho de Deus e a única fonte de vida espiritual.
O substantivo fé não é mencionado, porém a ênfase está sobre o verbo. Crença,
ou fé, não é a confiança no resultado final, como em Hebreus, nem confiança
para salvação pessoal, como em Paulo, antes, porém, um compromisso com a pessoa
de Jesus Cristo (6.29, 10.32, 17.3). Vai além da aceitação do testemunho a
respeito da validade da proposição; é uma decisão existencial entre a luz e as
trevas, Deus e o mundo, a verdade e o erro. O obstáculo à fé não é a falta de evidência,
mas os fatores subjetivos do orgulho, auto estima, um desejo de honras mundanas
e teimosia (5.44, 8.41, 9.22, 12.39).
4 - Glória. Diferente da Primeira Epístola de Pedro e das
cartas de Paulo, “glória” não é aquilo que segue a humilhação quanto ao tempo;
está ligada à humilhação e a transforma. Glória é basicamente uma revelação da
presença de Deus. Esta glória reside em Jesus, e seu brilho está em contraste
com a do Antigo Testamento (1.14 a 18). Em vez da glória shekinah habitando no
Templo, ela habita em Jesus que é o verdadeiro Templo (2.19). A característica
marcante neste Evangelho é que a glória emerge da ignomínia da morte (11.4, 12.33,
21.19). O sofrimento, a morte, a ressurreição e a ascensão de Jesus são vistos
como um só evento (7.39, 12.28 a 33). João estava convencido de que a glória é
essencialmente semelhante àquela testemunhada por Isaías (João 12.41).
5 - Regeneração. Uma metáfora que João desenvolve, com uma
ênfase não encontrada nos outros evangelhos, é a do “novo nascimento”. Esta
corrente subjacente vem à tona em 1.12 e 13, 3.1 a 10, 8.39 a 45. Enquanto
Paulo fala da nova vida em Cristo sob o título de justificação e empregue
termos
legais, João usa o conceito biológico de nascimento. Assim, a entrada na
vida cristã é vista como sendo “nascido de Deus” em adição ao ser nascido de
maneira natural (1.12). Na entrevista com Nicodemos Jesus declara enfaticamente
que a condição para participar no reino de Deus é ser “nascido da água e do
Espírito” (3.5). Aqui é feito o contraste entre a vida material e a espiritual,
um tem a que é característico deste Evangelho. Da mesma forma que a vida
material vem de pais humanos, assim a vida espiritual vem de Deus por meio do
Filho e do Espírito Santo. Esta questão da genealogia espiritual é explicada,
em alguma medida, no capitulo 8, onde Jesus acusa os judeus de terem como seu
pai o diabo, e afirma que um verdadeiro judeu não é aquele que pode traçar sua
descendência até Abraão, mas antes aquele que está na linhagem espiritual de
Abraão (8.39 a 58). Esta linhagem pode ser identificada pela obediência à
revelação divina. Neste caso, a revelação é por meio do seu Filho. A ideia não
é nova, porém a maneira pela qual João a expressa é única. A genealogia do
nascimento pode ser encontrada em outro lugar no Novo Testamento, em 1 Pedro
1.3 e 23, 2.2. O conceito tem exercido uma poderosa influência sobre a consequente
teologia cristã.
6 - O mundo. Este Evangelho contém fortes ênfases sobre um
dualismo moral, entre a luz e as trevas, o bem e o mal, Deus e o diabo, o
crente e o mundo. Este tema percorre todo o Evangelho, mas é especialmente
proeminente no prólogo (1.5,10 a 12). Ocorre novam ente num dos versículos chaves
do Evangelho: “O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram
mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram más” (3.19). Ele aparece
de novo na conversa de Jesus com seus irmãos, onde a hostilidade básica entre o
Redentor e o mundo é declarada: “Não pode o mundo odiar-vos, mas a mim me
odeia; porque eu dou testemunho a seu respeito de que suas obras são más”
(7.7). Esta hostilidade entre a luz e as trevas é novamente expressa após a
cura do homem cego (9.38 a 41). O tema é especialmente eminente no longo
discurso aos discípulos antes da prisão de Jesus. O ódio do mundo é um fato
básico da vida que eles devem encarar (15.18 a 16.33). Na confrontação
resultante, eles são assegurados da ajuda do Espírito Santo como seu Advogado
(16.7 a 11, Lucas 12.12).
7 - Amor. Embora o tema do amor seja proeminente em todos os
escritos cristãos, é especial mente evidente nos escritos de João. A relação de
Deus com o mundo hostil é basicamente de amor (3.16). Também, a qualidade que
distingue os discípulos de Jesus de todos os outros é o amor (13.34 e 35). O
ápice da oração intercessora de Jesus é o pedido pelo amor que une o Pai, o
Filho e os crentes (17.26). No diálogo de Jesus com Pedro, a qualidade elogiada
no relacionamento é o amor (21.15 a 19). Este tema é enfatizado ainda mais no
volume que acompanha o Evangelho, a Primeira Epístola de João.
8 - Verdade. O apelo deste Evangelho ao mundo dominado pela
cultura grega talvez se reflita na ênfase sobre a verdade. A revelação de Deus
equivale à verdade. O prólogo indica que enquanto a lei foi mediada por Moisés,
Jesus Cristo mediou uma bênção dupla, o benefício hebraico da graça e o
benefício grego da verdade. Tanto a bênção espiritual hebraica quanto a
helenista convergem em Jesus, o Filho de Deus. Mais tarde, Jesus assegura a
seus discípulos que a obediência à sua palavra lhes garantiria a verdade que
liberta (8.31 e 32). Jesus é a personificação da verdade (14.6). A verdade é
projetada para dentro do mundo cético e perplexo representado pela pergunta não
respondida de Pilatos, “O que é verdade?” (18.38). O próprio mundo está dividido
entre aqueles que são da verdade e aqueles que estão no pecado e no erro
(18.37). Finalmente, o próprio Evangelho reivindica ser a expressão da verdade.
O registro escrito é aquele que está conforme os fatos: esta é a afirmação
solene que fecha o volume (21.24). Estas são algumas das principais ideias que
formam a estrutura deste Evangelho. João não se contenta apenas em registrar os
eventos históricos; ele é seletivo nos eventos que escolhe para ilustrar alguns
destes temas. Os temas são como os de grandes sinfonias, muitos deles
introduzidos no prólogo, ou no prelúdio, e continuados por toda a estrutura, um
chegando à proeminência agora, e um outro depois. O pensamento de João é
frequentemente descrito como cíclico. E algo parecido com uma escadaria
circular ou espiral, na qual um tema aparece e então recua, para reaparecer
mais tarde num nível mais alto. João não trata de um tópico num único lugar e
depois parte para um outro, mas os mantém em suspensão por meio de sua
narrativa. O autor, por exemplo, toma cuidado em apontar os obstáculos à fé,
tal como uma atitude de apreciação imprópria pela estima do próximo (5.44), ou
o medo de pressão da comunidade para conformar-se. Exemplo: a que inibiu os
pais do homem que nasceu cego (9.22).
Composição do Evangelho
Nesta seção, duas questões devem ser claramente
diferenciadas, embora estejam intimamente relacionadas: a questão das fontes e
a questão da composição do Evangelho. Os versículos e capítulos como os temos
agora no presente texto segue a sequência original? Ou o original foi alterado?
Embora numerosos analistas, mais recentemente Barrett em sua enorme obra, tenham
optado pela primeira possibilidade, não poucos expositores propuseram-se a
reconstruir a verdadeira sequência dos versículos e capítulos. A título de
exemplo, podemos oferecer a ordem proposta. Macgregor, que leva a uma visão
diferente da composição do quarto Evangelho que faz, por exemplo, por Bultmann.
Segundo Macgregor, Morton, a ordem do Evangelho originalmente era: 1.1 a 3 e 13,
3. 31 a 36, 4.43 a 54, 6.1 a 21, 5.1 a 47, 7.15 a 24, 8.12 a 20, 7.1 a 14, 7.25
a 36, 8.21 a 59, 7.45 a 52, 7.37 a 42, 11.53 a 12.32, 3.14, 12.34, 3.16 a 21, 12.35
a 13.35, 16.25 a 33, 18.1 a 14, 18.19 a 24, 18.28 a 20.31.
Um primeiro redator acrescentou: 3.22 a 30, 18.15 a 18 e 18.25
a 27.
Um segundo redator adicionou uma segunda fonte a este
documento, da qual 4.1 a 42, 6.22 a 71, 10.1 a 11.52, 14.1 a 16, 17.1 a 26
deriva.
Alguns acréscimos desse segundo redator incluem: 1.6 a 8, 1.15,
7.53 a 8.11, 13.36 a 38, e 21.1 a 25.
Como é bem sabido, Bultmann seguiu um caminho diferente. O
fato de Bultmann não discutir a questão da autoria e suas fontes e colocar o
cristianismo primitivo em detalhes, mas começar seu comentário com uma
exposição do texto, o diferencia de outros comentaristas. É preciso reunir
informações sobre muitas questões introdutórias de discussões ocasionais no
corpo do comentário. Assim, a partir de observações preliminares sobre João 2.1
a 12 e 13 aprendemos que o evangelista usou uma fonte que continha uma coleção
de milagres. “É a fonte dos sinais, que em seu estilo é claramente distinguível
da linguagem do evangelista ou da fonte do discurso, que é a base do prólogo e
dos discursos seguintes; é igualmente claro e distinguível das histórias de
milagres da tradição sinótica”. João 1.35 a 50 forma a introdução à fonte “fonte
dos sinais”, João 20.30.
Desde a introdução do Prólogo, aprendemos que o evangelista
tomou um hino da comunidade batista, a qual ele pertencia, e o adaptou a Jesus.
As observações preliminares de 2.13 a 22 nos dizem que o evangelista derivou
sua história da purificação do templo, não dos sinóticos nem da tradição oral,
“mas de uma fonte literária quase certamente relacionada aos relatos
sinóticos”. A coisa peculiar sobre essa visão da questão é que o evangelista se
restringe essencialmente a amplificações que ele insere no texto usado por ele.
Mas o foco real do quarto Evangelho repousa nos discursos de revelação, que o
evangelista tomou emprestado da gnose não cristã. Deve-se notar também que uma
redação ocorreu depois do evangelista, já que de outra forma a estrutura do
Evangelho, como Bultmann a vê, torna-se incompreensível.
Eventos Omitidos
Um dos problemas do quarto Evangelho é a grande quantia de
eventos importantes, mencionados nos outros evangelhos, porém ignorados em
João. Entre eles as histórias da natividade, que são familiares a partir dos capítulos
em Mateus e Lucas, e as parábolas relatadas pelos sinóticos. Não há qualquer
menção, neste Evangelho, do exorcismo de demônios, embora Jesus seja acusado
três vezes de ser possuído por demônios. Neste Evangelho nenhuma atenção é dada
aos publicanos, leprosos ou crianças, como é característico dos outros três.
Nenhuma menção é feita à nomeação dos doze apóstolos. Não há nenhum “Sermão do
Monte”, tal como relatam Mateus e Lucas. A chamada dos pecadores ao
arrependimento está particularmente ausente neste relato. As características
apocalípticas dos sinóticos, incluindo os temas escatológicos e o aviso contra
o julgamento do inferno, não são especificadas neste Evangelho. Muitas máximas
e provérbios característicos de Jesus, como “vós sois o sal da terra” não estão
incluídos neste registro. Nenhuma menção é feita à instituição da Eucaristia,
embora esteja implícita no capitulo 6. João também omite a oração de Jesus no
Getsêmani. Não há uma descrição do julgamento perante Caifás, embora ele seja
insinuado neste relato. A ascensão de Jesus no Monte de Oliveiras é omitida,
embora o tema da ascensão seja muito característico do Evangelho. O aspecto
principal do problema de João é explicar os pontos nos quais este Evangelho
difere tão radicalmente dos primeiros três e porquê.
Propósito do Evangelho
João é o único dos evangelhos que contém uma declaração
precisa do propósito do autor: “Mas estes foram escritos para que você possa
crer que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e que, crendo, tenhais vida em seu
nome” (20.31). O objetivo de João era apologético (“para que você acreditasse
que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus”) e evangelístico (“e que acreditando que
você pode ter vida em Seu nome”). De acordo com seu propósito evangelístico,
João usou o verbo “crer” quase cem vezes, mais que o dobro dos sinóticos,
enfatizando que aqueles que creem em Jesus receberão a vida eterna (3.15, 16 e 36),
(4.14), (5.24, 39 e 40), (6.27, 33, 35, 40, 47, 48, 54, 63 e 68), (10. 10, 28),
(12.50), (14. 6), (17.2 e 3), (20.31).
O propósito apologético de João, inseparável de seu
propósito evangelístico, era convencer seus leitores da verdadeira identidade de
Jesus. Ele O apresenta como Deus encarnado (1.1 e 14, 8.23 e 58, 10.30, 20.28),
o Messias (1.41, 4.25 e 26) e o Salvador do mundo (4.42). Para esse fim, João
repetidamente enfatizou os sinais miraculosos de Jesus (3.2, 6.2 e 14, 7.31, 9.16,
11.47, 12.18, 20.30), incluindo oito específicos:
Transformando água em vinho (2.1 a 11). Curando o filho de
um oficial real (4.46 a 54). Curando um coxo na piscina de Betesda (5.1 a 18).
Alimentando os cinco mil (6.1 a 15). Caminhando no Mar da Galileia (6.16 a 21).
Curando um cego de nascença (9.1 a 41). Ressuscitando Lázaro dos mortos (11.1 a
45). Proporcionando uma captura milagrosa de peixe (21.6 a 11).
Além desses sinais, havia o sinal mais convincente de todos,
a ressurreição de Jesus (20.1 a 29). Em resumo, João apresenta Jesus como a
Palavra eterna, o Messias e o Filho de Deus que, por meio de Sua morte e
ressurreição, traz o dom da salvação para a humanidade. As pessoas respondem
aceitando ou rejeitando a salvação que vem somente através da crença nEle.
João e Jesus
João é o mais explicitamente teológico dos quatro evangelhos
e contribui com importantes insights sobre todos os locais primários da
doutrina cristã. A natureza e atributos de Deus, humanidade, caídos e
redimidos, (2.24 e 25, 3.3 a 8 e 19 a 21, 5.40, 6. 35 e 53 a 57, 7.37 a 39, 8.12
e 31 a 47, 10.27 a 29, 11.25 e 26, 14.17, 15.1 a 8 e 18 a 25, 16.3 e 8, 17.2 a 3
e 6 a 9, 20.22 e 31.) a pessoa de Cristo, a obra de Cristo (1.29 e 51, 2.19, 3.14
e 34, 4.22 e 42, 5.25 e 28, 12.24 e 32, 13.8, 14.3 e 18, 16.33, 17.2, 18.14 e 36,
20.1 a 21.14) a pessoa e obra do Espírito Santo (1. 13 e 32, 3.5, 4.24, 6.63, 7.39,
14.16, 15.26, 16.7 a 15, 19.34, 20.22) a igreja e sua missão (4.35, 13.31 a 16.33,
17.20 a 23, 20.19 a 23, 21.1 a 14 e 15 a 25) e a vida do novo mundo (3.15 e 36,
4.14, 5.24, 8.24 e 51, 10.28, 11.25, 12.25, 14.2) O leitor é encaminhado para
as seções relevantes deste livro e aos principais comentários para exposição
teológica detalhada.
O supremo foco doutrinário deste evangelho é, no entanto, a
pessoa de Cristo (embora nunca em separação de seu trabalho). Quanto à
divindade de Cristo, João oferece possivelmente o mais claro testemunho no Novo
Testamento. A divindade, no entanto, nunca é separável da verdadeira humanidade
de Cristo. Ele é simultaneamente divino e humano, não um em um ponto e o outro
em outro ponto, mas ambos juntos em cada ponto.
Quando a igreja tentou esclarecer sua compreensão da pessoa
de Jesus Cristo em Niceia, em 325, e novamente em Calcedônia, em 451, esse
evangelho foi de particular ajuda para sustentar a confissão de Alguém que é ao
mesmo tempo verdadeiro Deus e verdadeiro homem. João não faz nenhuma tentativa
de diluir a plena realidade tanto da divindade quanto da humanidade de Cristo
e, assim, ajudou a igreja a confessar Jesus Cristo como uma pessoa em duas
naturezas. É importante reconhecer que os autores dos primeiros Credos nunca
imaginaram que estivessem fornecendo uma explicação exaustiva de quem era
Cristo, isso é um mistério para sempre além do nosso alcance. O que eles se
viram fazendo foi simplesmente Erigir, à luz do testemunho da Escritura, certos
limites nos quais a pessoa do Deus homem deveria ser autenticamente encontrada.
Fora desses limites estava a heresia, dentro desses limites, reside a verdade.
Da mesma forma, hoje, somos convidados a nos aproximar
reverentemente dentro das paredes da Palavra de Deus, a contemplar admirável e
adoradoramente a glória do eterno Filho feito carne, e depois sair para viver
para ele em meio às realidades de nosso mundo cotidiano. O evangelho de João
nos ajuda a fazer isso. Mas quem é o Filho em si mesmo permanece um mistério
além de nossa compreensão.
É este mistério que está por trás da revelação neste
evangelho, como em todos os evangelhos. É também a explicação do efeito de um estudo
do evangelho de João, pois, ao final, sentimos que conhecemos melhor a Cristo,
no mesmo momento em que nos encontramos tendo que reconhecer que ele está ainda
mais além do nosso alcance. Isso não deveria nos surpreender. Se a antiga
máxima teológica é válida, Deus compreensivo não é Deus (um Deus que é
plenamente compreendido não é Deus), então é igualmente verdade afirmar, Cristo,
o que é não Deus (um Cristo que é compreendido plenamente não é divino).
O mistério de Jesus Cristo é o tema deste evangelho, sempre
além de nós, mas sempre nos convocando para explorá-lo mais plenamente. A
exploração e o serviço da Divindade serão nossa tarefa infinita, embora feliz,
no mundo vindouro, mas podemos começar agora, e não pode haver lugar melhor
para lançar-se nas profundezas do que estudar e expor esse grande evangelho de
João.
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